28 abril, 2007

Eu, etiqueta

Realizando as leituras indicadas no PROA 05,
lembrei da poesia: Eu, etiqueta do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Eu, etiqueta
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça até o bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordem de uso, abuso, reincidência,
costume, hábiot, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homemanúncio intinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocála por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos de mercado.
Com que inocência demitome de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solitário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar, ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou vê lá anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas indiossicrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco de roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
asio de estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, me recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo dos outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem,
meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

Carlos Drummond de Andrade.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cristiane, sou professora de Ensino Médio e realizei um trabalho com meus alunos utilizando esta poesia, eles fizeram reflexões interessantes, inclusive construiram um boneco em forma de homem e para representar a poesia e sua mensagem o construiram usando logomarcas, logotipos. Ficou bastante interessante.
Parabéns pelo seu blog.

Leonor Cordeiro disse...

Coloquei no meu blog NA DANÇA DAS PALAVRAS, um vídeo com esse poema declamado por Paulo Autran : http://leonorcordeiro.blogspot.com/2007/06/blog-post.html
Acho que você vai gostar.
Grande abraço !!!
Com carinho,
Leonor Cordeiro